segunda-feira, 24 de julho de 2017

Ser surfista - Jornal O Globo

Ser surfista


Que vida levam essas pessoas que escolhem andar sobre as águas do mar como jesuses sem filiação divina!




Lá por meus dez anos, quando me perguntavam o que seria quando crescesse, respondia: rabino ou astronauta. Nos dois casos, a ambição se voltava para o infinito e o eterno. Depois, simplifiquei a equação: queria ser “rabino-astronauta”. Se tivesse levado a cabo meu projeto, seria aquele homem na foto com barba longa e chapéu flanando na baixa gravidade da Lua com os rolos da Torá nos braços. Se alguém quiser se habilitar, a vaga está aberta: para mim é tarde demais. Não quero mais ser rabino e não tenho condições físicas nem curriculares para um treinamento na Nasa. Meus projetos espaciais, hoje, caminham em duas frentes: ser abduzido e conhecer todos os mistérios do Universo como criatura onisciente e imaterial. Ou ficar rico (menos provável ainda...) e comprar uma passagem de ônibus espacial.

Com a adolescência, entrei de cabeça em leituras e no estudo de música e meus planos se voltaram para as artes. Por pertencer a uma família de gráficos e editores de revistas, o jornalismo passou a correr em paralelo. Como opção exótica, pintou a ideia de cursar química industrial. Não tenho a menor suspeita dos motivos. Na infância, bebia os potinhos do Laboratório Químico da Estrela. Pode ter restado uma nostalgia psicoativa. Felizmente não segui por essa estrada. Os elementos dos laboratórios para crianças eram bastante diluídos, e, se deixaram sequelas, provavelmente são confundidas com algumas de minhas excentricidades. Num laboratório para adultos o resultado seria imprevisível e, talvez, funesto.

Acabei cursando joralismo na UFRJ, onde também formei uma banda de rock. Música e literatura habitavam meus sonhos mais bacanas, mas o jornalismo também me chamava, com sua maior concisão e seus ideais apontando para o conhecimento da realidade e uma missão ética de vigilância e transformação. No fim das contas, virei jornalista (e escritor), e consegui unir o fazer do repórter e do editor com o campo de criação autoral, num vetor que me situou também no espaço da crônica. O que me trouxe, e me traz, muita alegria.

Mas no caminho ficou um sonho esquecido, quase reprimido: o surfe. Um primo mais velho surfava e tocava Minimoog. Estávamos na metade dos anos 1970. Na Região dos Lagos de então, numa Cabo Frio semideserta entrecortada por lagoas e manguezais, cheguei a subir numa prancha e desci uma pequena onda. Não levava jeito, ou não tive jogo de cintura para prosseguir. Mas peguei muito jacaré e vi as ondas de Maçambaba sentado em dunas amarradas por vegetação árida. Assisti a “Endless summer”, com aquelas ondas eternas, a imagem de um surfista que atravessa metade da faixa litorânea na ponta de vagas suaves e estéticas. Que vida levam essas pessoas que escolhem andar sobre as águas como jesuses sem filiação divina!

Ouvia muita gente dizer que surfistas não falam mais que dez palavras. Com o tempo, vi que essa noção preconceituosa escondia algo profundo: falar para quê? O que valem as palavras quando se passa o dia num diálogo com a água, o sal, o vento, o Sol, em manobras sempre inéditas, transitando por tubos móveis, transpondo esculturas mutantes cor de esmeralda, paredes diáfanas, colossos de espuma com arco-íris, e passando noites ao luar, ouvindo música, namorando, dormindo ao relento ou em choupanas primitivas?

O mais culto, letrado, dos seres, se conseguisse prosperar nessas condições de integração com a natureza em meio a uma civilização caótica em permanente conflito, abriria mão do peso impositivo palavras, o fascismo da língua de que fala Barthes, em prol de uma comunicação muito mais abrangente dos sentidos e do intelecto com aquilo que o verbo nunca será capaz de expressar.

Essas reflexões juvenis me têm voltado frequentemente à cabeça e me levam a arriscar: o surfista é o ser mais inteligente na corrente civilizacional. Está na crista da evolução humana. Claro, o surfe mudou, se profissionalizou, exige investimento para os que se engajam numa perspectiva contemporânea, atrelada à carreira, incluindo patrocínios, planejamento para competições e viagens. É quase impossível sair explorando ilhas a esmo e viver de migalhas, como no tempo da contracultura. Mas a essência permanece: é romântica. Está na busca sã de fugir ao hábito, que robotiza o cidadão nas entranhas da cidade.

Diferentemente de outros esportes radicais, nos quais o risco e a adrenalina parecem ser o objetivo único, chapado, o surfe continua mais interessado na criação, no fluir, na autonomia do corpo e da mente, sendo o risco, embora presente, secundário. Na química do surfe, a adrenalina enamora-se da dopamina, da serotonina e da oxitocina, na busca de um estado mais de elevação do que de queda. E, quando vem a queda, é levantar, sacudir a espuma e dar a volta por cima da arrebentação para a próxima jornada.


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Fonte: Ser surfista - Jornal O Globo
Ser surfista - Jornal O Globo

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