segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Arquipélago perdido  Kamaka: 23° Sul 134° Oeste



Por Kim Feldmann em 23/09/17

Aventureiro desbrava onda desconhecida do arquipélago de Gambier.







 
Kamaka, uma onda nos confins da Polinésia. Foto: Kim Feldmann.


 

A 1.500 quilômetros a Sudeste do Taiti, e 6.000 quilômetros a sudoeste das Américas, o arquipélago de Gambier com certeza poderia ser citado no dicionário como uma definição de "isolado". Essas ilhas não são um destino de surfe comum; ou nem mesmo um destino de viagem comum.

Com menos de mil habitantes, a capital Mangareva recebe a maioria dos turistas durante suas duas semanas de festividades em julho, e no resto do ano os únicos rostos diferentes a caminhar pelas ruas são os dos que chegam em veleiro, normalmente só de passagem, vindo de algum lugar nas Américas em direção ao Taiti.

Não há problema em revelar as coordenadas exatas dessas ilhas perdidas no meio do Pacífico, já que, bom, estão perdidas no meio do Pacífico. Dentre elas, Kamaka é a primeira mencionada pelos locais quando se fala em surfe. "É igual a Teahupoo", dizem eles, com os olhos arregalados. Em geral a maioria não surfa, mas acredito que se surfassem ficariam contentes em dividir o que a natureza tem pra oferecer, já que de cada pessoa que conhecemos recebemos um cacho de bananas ou uma sacola cheia de mamões, e as palavras "generosidade" e "amizade" parecem ser ensinadas aos bebês antes de "pai" e "mãe".

O arquipélago é parcialmente rodeado por plataformas de coral, que chegam perto o suficiente da superfície a ponto de causar um efeito barreira, acalmando as correntes que vem do oceano a todo vapor e protegendo as ilhas, o que dá a sensação de estar em uma piscina gigante. Há duas maneiras de chegar a essa ‘lagoa oceânica’: quebrando o porquinho (que deve estar transbordando) e comprando uma passagem ao Taiti, logo outra para Mangareva (voos são inconstantes e caros); ou vindo pelo mar, em algum tipo de embarcação, dependendo da motivação e desapego de cada um.

Devido a uma sucessão de "bons acidentes" (e é claro, com o porquinho estando longe de transbordar), acabei com a opção aparentemente mais interessante: velejando. A um tempo atrás, numa mal-conectada e frustrante tentativa de conversa virtual com um amigo australiano (quem eu havia conhecido um ano antes) apenas consegui escutar: "velejar do Panama à Polinésia Francesa, tá dentro?". Essas palavras me fizeram abandonar a vida boa e consistente perfeição das bancadas de Puerto Escondido no México, e embarcar em cinco ônibus seguidos, chegando a Bocas del Toro no Panamá quatro dias depois, cansado e fedido, pronto pra começar a nossa trip de barco. Quatro intensos meses passaram, e finalmente chegamos.

A bordo do Kuhela (um Downeast de 38 pés, construído na Califórnia em 1979), no meio do oceano, vi o outro lado da moeda. A tranquilidade que pensei que ia achar ao aceitar a proposta da viagem deu espaço a trabalho árduo e 24 noites mal dormidas, até vir à tona novamente quando avistamos terra no horizonte, na manhã do 25o dia.

Foram 579 horas entre Galápagos e as Ilhas de Gambier, tempo suficiente para ler um ou dois livros e entender o quão pequenos e indefesos somos comparados ao majestoso oceano. Depois de passar uma semana no paraíso que tanto buscamos, estufados dentro do barco tentando consertar algo "inconsertável" no motor, acabamos chutando o pau da barraca e resolvendo o problema da maneira mais direta: pedindo uma peça nova. Enquanto a argola de bronze de dois quilos não chegava estávamos "presos", o que em realidade foi muito melhor do que soava.


1200x900
Não há problema em revelar as coordenadas exatas dessas ilhas perdidas no meio do Pacífico, já que, bom, estão perdidas no meio do Pacífico. Foto: Kim Feldmann.


 

Essa impertinência com o motor nos ajudou a respirar profundamente, encher o tanque do bote inflável e desbravar outros pedaços de terra nessa lagoa gigante, em busca de algo que se assemelhasse a uma onda e recifes de corais onde praticar mergulho de apneia.

Saímos sem destino definido, mas com hora para voltar, já que Josh tinha uma ligação marcada para as 14 horas com o agente encarregado de nos enviar a peça necessária para reparar o motor. Por esse motivo, só levamos o equipamento de mergulho, pensando que não teríamos tempo de surfar mesmo se encontrássemos algo. Foi um erro de principiante.

Assim que deixamos a baía onde estávamos ancorados, notamos o movimento pulsante da água e a espuma de ondas recém-rompidas na barreira de coral em forma de linhas brancas no horizonte. Aproximando-se de Makaroi - uma das ilhas na parte sudoeste do arquipélago – ficamos impressionados com a intensidade na qual as ondas rompiam contra o costão norte.

Com o bote em ponto morto, observamos a ondulação entrar na baía e envolver as pedras, formando ondas remexidas ao encontrar a laje de coral abaixo, mas que depois de alguns metros organizavam suas linhas e mostravam uma parede em pé e rápida, logo desaparecendo quando os corais se distanciavam da superfície. Era uma onda, e era surfável. Desacreditados e um pouco frustrados em não ter levado as pranchas, seguimos dois quilômetros mais ao sul, em direção à famosa Kamaka.

Infelizmente (ou talvez felizmente) não nos deparamos com nada igual a Teahupoo, mas o que víamos era com certeza suficiente para aumentar o batimento cardíaco e saciar a secura por um surfe, depois de passar quase um mês rodeado de água sem sequer dar um mergulho. O que mais chamava atenção, depois da óbvia imagem das linhas de água azul-turquesa de 2 metros correndo paralelas à costa, era o contraste de vegetação do lugar: pinheiros e coqueiros se equilibravam lado a lado, desde a praia até o pico mais alto da ilha. Rochas vulcânicas negras tomavam conta dos arredores, enquanto na praia reinavam as pedras-praia, que a princípio pareciam ter sido colocadas ali por alguém - mais que mais tarde descobrimos serem formadas por uma reação química entre a areia e a água salgada.

O lugar era estranhamente intrigante, e a transparência da água relaxava ao mesmo tempo que assustava ao expor os pedaços de coral escondidos logo abaixo da superfície. Sem pranchas ou tempo pra voltar até o barco e busca-las, arrancávamos os cabelos com cada série que quebrava a poucos metros na nossa frente. Confrontados pela prova de que haviam ondas surfáveis, o que nos restava era acelerar o bote e achar um lugar para mergulhar e tentar nos manter ocupados, esperando que o dia passasse rápido para voltarmos na manhã seguinte.

O cheiro de café costa-riquenho e do mamão pra lá de maduro sendo aberto davam início ao dia, ainda de noite. Com o corpo travado e a mente entre duas dimensões, lentamente fomos preparando as coisas e jogando tudo pra dentro do bote, que flutuava pacientemente na água calma e escura, ao lado do Kuhela. Conforme a xícara, uma vez cheia de café, ia esvaziando apressávamos o passo como se sob o efeito de uma ampulheta, mas realmente sob efeito da cafeína.

Entre Mangareva e Kamaka eram 15 km, o que não é normalmente considerado longe, mas quando o bote se move a 15 km/h e a gasolina custa US$ 2,50 por litro, a percepção de distância muda um pouco. Checando que tínhamos comida, água e âncora, demos partida no motor, tentando abafar o barulho com expressões faciais em respeito aos que ainda dormiam nos barcos ao nosso redor; foi inútil.

 

Na metade do caminho notamos algo diferente ao dia anterior; já não se via mais espuma perto das ilhas. O swell claramente ainda estava ali, mesmo que de maneira menos violenta, e ao nos aproximarmos de uma boia sinalizadora vimos que a maré estava no auge da secura.


1200x900
Arquipélago de Gambier tem menos de mil habitantes. Foto: Kim Feldmann.


 

Sentimos um pingo de desânimo ao passar pela vizinha de Kamaka, Makaroi, que no dia anterior emanava fúria a cada explosão de ondas em suas pedras, mas que hoje parecia dócil como um pônei. Logo a brisa terral soprou o desânimo e trouxe ar fresco e inspiração ao chegarmos à baía de Kamaka e ver que a pequena baixada no swell, combinada com a maré seca, haviam organizado as sessões e alinhado as ondas.

 

Aprendemos ali uma grande lição: cada qual deve trazer seu bloco de parafina, evitando perda de tempo com discussões e par-ou-ímpar. A ansiedade provocada pela visão daquelas ondas quase perfeitas amenizou ao saltar do bote e mergulhar na refrescante e transparente água do Pacifico. Voltando à superfície com um sorriso estampado no rosto, remamos para o outside em direção à nossa recompensa depois de quase um mês em alto mar sendo vítima consciente do poder do oceano: "quem procura acha", pensei comigo mesmo.

De algum lugar do Pacífico, o swell viaja em águas com mais de 1000 metros de profundidade, e em muito pouco espaço e tempo diminui esse número até chegar a barreira de coral de apenas 3 metros, que irregularmente circula o arquipélago. Logo, as águas voltam a escurecer e a mesma ondulação se acalma nos 30 metros de profundidade, até que é bruscamente interrompida novamente pelos corais que circulam a costa norte de Kamaka, tão rasos quanto 1,5 metros, formando uma esquerda ao lado do costão de pedras vulcânicas.

A onda engorda após o drop e reforma conforme se aproxima às bancadas mais expostas do inside, até se desfazer completamente na areia da praia. Nesse swell de sudoeste em específico, as ondas vinham em intervalos constantes mas eram difíceis de ler, fazendo do posicionamento um fator chave. Tentando ficar o mais próximo do pico possível poderia resultar em uma série na cabeça, caso essa decidisse continuar o seu caminho ao invés de envolver-se ao redor das pedras na ponta da ilha; tudo tem seu preço.


900x1200
Kuhela, nosso parceiro de viagem. Foto: Kim Feldmann.




900x1200
Com as pranchas a caminho do desconhecido. Foto: Kim Feldmann.


 

Passamos um bom tempo lendo as ondas, e naquela primeira sessão do dia acabamos ficando mais no inside, onde as ondas reformavam com menos tamanho e força, mas emparedavam melhor e as cabeças de coral nitidamente visíveis debaixo da superfície faziam o coração acelerar. Quando pensamos ter encontrado um lugar completamente isolado, com ondas mais que divertidas e sem sinal de outro ser humano, avistamos uma canoa na praia. Sondando um pouco mais, vimos um telhado e logo painéis solares. Os próximos a entrarem em cena foram um cachorro e um homem, que caminhavam morro acima, por uma trilha entre as árvores que claramente foi aberta por alguém. De repente, retornamos do estado de transe. Assim que os braços começaram a cansar, remamos à praia para ver quem habitava aquela ilha que, à principio, parecia inabitável.

A maneira como estamos todos interligados é, de algum modo, algo mágico. Sentados no topo do morro na ilha Kamaka, tomando um café com o homem que avistamos caminhando pela praia, nos damos conta que ele era a mesma pessoa de quem ouvimos falar três meses atrás no Panamá, quando um amigo nos contava sobre uma onda de alta qualidade em uma das ilhas do Arquipélago de Gambier. Segundo sua história, um conhecido seu havia encontrado tubos perfeitos, sem ninguém ao redor, e depois de cada sessão tomava cervejas com o único homem que morava lá.

John, filho de pais americanos, nascido no Taiti, se mudou para Kamaka há mais de 30 anos, e vive aqui desde então. Ele construiu sua casa e criou dois filhos nessa ilha que não aparece na maioria dos mapas; o que, segundo ele, não era um problema na hora de conseguir tutores pra ensinar as crianças. Estórias não faltavam, e enquanto esperávamos a maré subir sentamos à sombra de um pinheiro e escutamos as incríveis aventuras que esse verdadeiro personagem tinha pra contar.


1200x900
Locais chamam essa onda de Mini-Teahupoo. Foto: Kim Feldmann.


 

O aumento de intensidade nos sons vindo do mar nos fizeram olhar pra baixo, e vendo que o swell entrava com mais atitude agradecemos John pelo café e a hospitalidade, e corremos morro abaixo até a praia. As ondas pareciam estar quebrando mais perto do costão, mais ao fundo e mais cavadas, na tentativa de nos provar o porque era chamada de "mini Teahupoo" pelos locais.

A enchida da maré também influenciou o movimento da água perto da zona de impacto, deixando claro que não era uma boa ideia boiar por ali. A sessão da tarde se mostrava mais intensa e divertida que a da manhã. Com a maré alta cobrindo melhor o recife, nossa confiança aumentava, nos motivando a se posicionar atrás do pico, atrasando o drop e desfrutando da inclinação da parede antes da breve engordada e reformação no inside.

 

Com os ombros quase imóveis e os olhos ardendo de tanto abri-los embaixo da água, relutantemente remamos de volta ao bote, que continuava estacionado onde o havíamos deixado. A âncora pesava mais do que meu corpo tinha energia pra levantar, e o ataque de risos ao entender a situação não ajudava o processo de trazê-la a bordo. Tínhamos passado o dia numa ilha quase deserta, surfando ondas que aos nossos olhos eram perfeitas, até o corpo dizer chega. Um ar de ‘missão cumprida’ soprava o lip das ondas que continuavam a quebrar em linha, correndo ininterruptas até a areia branca da praia.


900x1200
Pôr-do-sol alucinante em Gambier. Foto: Kim Feldmann.




900x1200
Necessário, somente o necessário. Foto: Kim Feldmann.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No caminho de volta, nossos olhos se mantinham fixos nas ondas deixadas pra trás, enquanto a mente tentava controlar a turbulência que vinha do estômago, especialmente depois que John nos contou sobre a pizzaria de seu filho (Teotu), no centrinho de Mangareva. Uma ideia surgiu e se tornou mantra. Foi só quando dei a primeira mordida naquela pedaço de céu coberto de queijo, que a real sensação de missão cumprida se revelou. E quando a vida parecia não poder ficar melhor, Teotu nos trouxe uma de suas criações culinárias, a Kamaka:

– Essa é por conta da casa.

 

Clique aqui ou acesse o perfil no Instagram (@kimmfeldmann) para saber mais sobre a viagem de Kim Feldmann.





Fonte: Waves
Arquipélago perdido  Kamaka: 23° Sul 134° Oeste

Nenhum comentário:

Postar um comentário