quarta-feira, 28 de junho de 2017

Surf & Cult: Machucho: Sujeito Composto

 

Reconhecido como um dos mais inventivos shapers do Brasil, Jair Fernandes, o Machucho, completa quatro décadas de experiências no desenvolvimento de novas formas de fabricar pranchas de surfe
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As estruturas em forma de grandes troncos de árvore tem olhos vazados que funcionam como janelas, um nariz protuberante e uma boca que chega até o piso, servindo de porta. Produzidas a partir de finas lâminas de compensado de madeira e revestidas por uma grossa camada de poliuretano (PU) expandido, aplicado com uma pistola de spray de secagem ultra-rápida, elas ocupam boa parte do amplo galpão.

O dono do espaço e da pistola chama-se Jair Fernandes, um shaper com alma de cientista, mais conhecido no meio do surfe pelo apelido Machucho. Estou ali para conhecer mais sobre os muitos processos de construir pranchas que ele inventou ao longo de quase quatro décadas de experimentação. As pranchas são o foco da visita, mas não dá para simplesmente ignorar a curiosidade despertada por aqueles cabanas de espuma em forma de tronco de árvore, que nem ele mesmo sabe como chamar.

Jair bate na lateral de um das “cabana-monstro” produzindo um som oco e explica que a camada de PU aplicada com spray é capaz de criar ambientes totalmente impermeáveis e com excelente isolamento térmico e acústico. Características que, segundo ele, levaram o exército norte-americano a cobrir seus abrigos militares com este composto de modo a enfrentar as temperaturas extremas da árida região do Texas, reduzindo a temperatura em até 15 graus – o que se traduz em conforto e economia de energia, ao dispensar o uso de aquecedor e ar-condicionado.



A cabana de Jair

Diante destas qualidades, ele conta que decidiu importar duas máquinas de spray de PU, vestiu a roupa de proteção e começou a fazer experiências disparando a sua pistola de espuma de alta pressão, posicionando-se a três metros de distância do alvo, para criar estruturas como estas para vislumbrar as possibilidades de uso. Entre as ideias que surgiram para as cabanas, ele cita o uso como brinquedo em parques infantis ou como uma espécie de iglu alternativo às barracas de camping. Além disso, ele pensou em fazer estruturas maiores para servir como quiosque de praia ou cobertura para telhados de granjas de aves , por exemplo.

A expansão de poliuretano é um processo químico que deu origem à prancha de surfe moderna a partir dos anos 60, com a industrialização dos blocos de espuma utilizados até hoje em larga escala pela grande maioria dos shapers em suas criações. Mas Machucho explica que esta nova máquina que dispara jatos de PU não funcionaria para criar blocos de pranchas, pois os componentes se misturam logo na saída do bico da pistola, onde a espuma se expande e se fixa com velocidade de secagem quase instantânea, não permitindo que se trabalhe a espuma no molde.

Por essas e outras, trata-se de um processo que exige cuidados redobrados de operação, podendo causar graves problemas de saúde caso a mistura tóxica penetre na pele. “É como brincar de massinha, só que em escala gigante”, diverte-se Machucho, com aquele olhar peralta de uma criança que está aprontando alguma coisa que os pais não deveriam saber.

Vegetal Aquático

Nascido em Tubarão, no sul Santa Catarina, em 1952, Jair era um menino branquelo que ganhou de seu pai o apelido Machucho, uma variedade branca de chuchu. Mal sabia o senhor Fernandes que o nome do aguado vegetal colocado no quarto filho de uma numerosa prole de 15 irmãos, colaria entre os amigos de Jair e, a partir de meados dos anos 70, passaria a estampar os bicos dos mais diferentes artefatos de correr ondas nas praias do sul do Brasil. “O apelido pegou e depois de um tempo todo mundo me chamava de Machucho, menos o meu pai”, relembra Jair sorrindo.

Só fui conhecer pessoalmente Jair em abril de 2011, quando ele me recebeu em sua casa na Avenida das Rendeiras, na beira da Lagoa da Conceição em Florianópolis, para gravarmos uma entrevista para o documentário “Pegadas Salgadas”. Mas o nome Machucho já estava gravado no meu imaginário de surfista desde que peguei a minha primeira onda com uma prancha de fibra de vidro no verão de 1984, na praia de Jaguaruna no sul do estado. Lembro como se fosse hoje daquela monoquilha Machucho 6,6’’ wing pin toda azul dos anos 70, que peguei emprestada com meu primo Claudio e, com a força e a empolgação dos meus oito anos de idade, apoiei na cabeça e carreguei com dificuldade até a praia.

Meus amigos todos haviam seguido o mesmo roteiro, passando das abrasivas pranchas de isopor para as pranchas de fibra compradas de segunda mão. Assim, naquele verão, depois de surfar algumas vezes com aquela monoquilha, tive a certeza de que queria continuar surfando e também convenci meus pais a me comprarem uma prancha de verdade.

A primeira metade dos anos 80 foi uma época de mudanças radicais nos equipamentos de surfe, com diversas experimentações de design e número de quilhas, até a consolidação definitiva do modelo “thruster” de Simon Anderson, que estabeleceu uma espécie de “ditadura das triquilhas” nas duas décadas seguintes. Assim, enquanto eu comecei a surfar com uma monoquilha e logo depois passei para uma triquilha 5’11’, lembro que no meu grupo de amigos da praia um deles usava uma biquilha Machucho e outro já tinha uma quadriquilha da marca H20. “A H20 era uma marca minha também”, conta Machucho, para minha surpresa, confirmando que o uso das quatro quilhas do pioneiro Ricardo Bocão teve também seus seguidores em Santa Catarina já naquela época, muito antes da ressureição (e afirmação definitiva) do modelo nos anos 2000.

E foi nesse tom de surpresa e descoberta que a conversa foi se aprofundado cada vez mais no rico universo de realizações de Jair como shaper e suas muitas invenções. Tanto que depois de gravar a conversa, não resisti à curiosidade de ver de perto algumas destas criações e perguntei se podia visitar o seu galpão. Ele topou, não sem antes me alertar que já não fabricava mais pranchas comercialmente e que o local pouco se parecia com uma oficina de shape. Seguimos então alguns poucos minutos pela estrada que leva à praia da Joaquina, perto do Beco dos Surfistas, região onde Machucho chegou em 1983 para viver o sonho dourado do surfe em Floripa e de onde nunca mais saiu. Lá se esconde o que poderíamos chamar de “o laboratório secreto de Machucho”.



Metendo a mão

Tudo começou uma década antes, em 1972, num verão em Imbituba, quando aos 20 anos de idade Jair descobriu o surfe, uma novidade trazida por uma penca de cariocas, que incluía o já citado Bocão, Antonio Martins “Ianzinho” e os irmãos Catão. Fascinado com esta turma que a cada temporada aparecia para desbravar as ondas da região, no ano seguinte Jair comprou deles uma prancha e decidiu se aventurar no mar. “Era uma monoquilha usada do Coronel Parreira (São Conrado Surfboards), com dois estabilizadores de fibra, bem pesada”, lembra Machucho.

Logo o desafio de construir as suas próprias pranchas de surfe tornaria-se um passatempo tão estimulante quanto o próprio ato de surfar, especialmente quando a criação incluía o desenvolvimento de um novo método de fabricação. Assim, disposto a confeccionar a sua própria prancha, Jair conta que vendeu um automóvel que tinha, comprou umas ferramentas e, a partir de uma amizade com o shaper carioca Mario Bração, foi até o Rio de Janeiro, de onde voltou com alguns outlines. “Na época, eu já fazia uns consertos de pranchas pro pessoal daqui e aprendi a mexer com resina. Daí eu fui metendo a mão e aprendendo tudo meio sozinho e não parei mais”, explica com seu sorriso tranquilo característico.



Não parar mais significou estar sempre em busca de novas formas e processos para fabricar pranchas. Destas motivações, surgidas em forma de desafios pessoais típicos de uma mente inventiva, surgiram ideias como uma prancha de surfe inflável – talvez melhor definidia como uma prancha “calibrável” – ; diversos modelos de pranchas de bodyboard - alguns com quilhas e alças -; pranchas EPS (isopor) sem longarina, feitas em um sistema de prensagem por termo-moldagem, além do uso de madeira e combinações de diversos polímeros como matéria–prima para moldar estruturas em sanduíche, visando tornar as pranchas cada vez mais leves, resistentes, e fáceis de fabricar.

Conversando sobre pranchas de surfe com Machucho, logo percebe-se que, mais do que o interesse pelos designs e as configurações de tamanho, espessura e curva de bico e concave, a sua principal motivação criativa está focada na experimentação com os materiais e as tecnologias de fabricação. Assim, ele foi se tornando um expert em processos que envolvem a expansão de poliueretano, espumas de XPS (styrofoam) Polietileno (ethafoam), EPS, EVA, PET reciclável, moldes de prensa, além de máquinas adptadas e compostos químicos que pudessem aprimorar os processos de fabricação de uma prancha.

Por essas e outras, já disseram que ele é o “Professor Pardal” do surfe, e isso me vem a mente quando ele conta que é capaz de perder o sono e sair de casa no meio da noite para ir ao galpão-laboratório e colocar em prática alguma ideia que não sai da sua cabeça. “Umas coisas a gente testa e não dá certo, outras a gente consegue desenvolver”, conta Jair.



A fama inicial de shaper foi consolidando-se no sul do estado ao longo de oito anos fabricando pranchas, desde a primeira oficina em sua cidade natal, migrando para a vizinha Laguna e depois na praia de Itapirubá, onde trabalhou até se fixar de vez em Floripa. Então quando Jair aportou na ilha de Santa Catarina em busca de melhores oportunidades de negócios, ele já trazia na bagagem um nome conhecido e um público cativo.

A decisão de largar tudo e tentar uma nova vida na capital veio por influência de seu falecido amigo e conterrâneo, Ledo Ronchi, fundador da revista de surfe Inside e um dos principais nomes no processo de profissionalização do surfe em Santa Catarina, com a organização de muitos eventos e apoio aos atletas. Juntos, eles participaram diretamente do movimento que em poucos anos transformaria Florianópolis em “Floripa", a capital brasileira do surfe, especialmente a partir do icônico campeonato mundial Hang Loose Pro de 1986 na Joaquina.


Portátil, Machucho, Luis Neguinho e Ledo em Floripa, anos 80

Nos primeiros tempos, a oficina e a revista - que na época ainda era apenas um jornalzinho em preto e branco - funcionavam na mesma casa alugada no Beco dos Surfistas e Machucho recorda-se que, no início, Ledo e o amigo Humberto “Portátil” - outro conterrâneo de Tubarão que tornou-se um personagem folclórico da Joaquina – chegaram a trabalhar com ele na produção das pranchas. Ao lembrar dos idílicos anos 80 em Floripa, Jair cita uma atmosfera mais tranquila na ilha, onde o surfe era uma coisa mais provinciana, sem a invasão tão intensa de turistas e praticantes de outras regiões: “Hoje tu vai surfar e não conhece a maioria das pessoas na água”, observa, “mas por outro lado isso é bom, pois mostra que o surfe tá evoluindo”, completa.

Esta impessoalidade gerada pelo crescimento do surfe refletiu-se também na profissão de Jair, que acompanhou o surgimento de dezenas de fabricantes de pranchas de surfe em Floripa a partir dos anos 90, especialmente com o advento das maquinas de shape na virada do século, que de certa forma colocaram o surfe na era da produção industrial e canibalizaram o mercado, numa guerra de preços que diminui a qualidade das pranchas e as margens de lucro dos fabricantes: “Hoje em dia tem muito shaper por causa das máquinas DSD (Digital Surfing Design). Antes, muitos não conseguiam fazer uma prancha boa tendo que plainar na mão, mas hoje quem é bom no computador e entende um pouco de surfe consegue fazer uma prancha até melhor”, reflete , para depois concluir com um sorriso debochado que “na verdade quem está shapeando mesmo são as maquinas. O pessoal só tá dando o acabamento”.
 


Caminhão de Pranchas

Mas Machucho não é do tipo de se lamuriar em comparações do presente com o passado dourado, nem de se ater a preconceitos ou fórmulas definitivas. Por conta disso, ele conseguiu manter-se sempre um passo a frente dos seus concorrentes, na busca por novidades tecnológicas relacionadas aos equipamentos.

Foi assim que ele tornou-se pioneiro no Brasil na fabricação de bodyboards, criando os primeiros modelos experimentais ainda em 1982. “No início, as pranchas eram mais duras e pesadas, feitas com núcleo de poliuretano e encapadas com fibra de vidro e depois EVA, laminadas dentro de moldes”, recorda-se. Inclusive algumas destas pranchas tinham alças e duas quilhas acopladas, copiando um modelo que ele havia visto numa revista.

Quando o bodyboard explodiu de vez como esporte de massa no Brasil, na segunda metade da década de 80, Machucho já tinha adotado o sistema de produção das pranchas norte-americanas, feitas com bloco de ethafoam, uma espuma flexível de polietileno com solda de ar quente. O sucesso foi tão grande que ele investiu em equipamentos e instalou uma máquina de esteira em sua fábrica na Joaquina, onde chegou a produzir uma média de 200 pranchas por dia.

“Inclusive teve uma época que eu parei de fazer pranchas de surfe e fiquei só com os bodyboards, pois vendia de caminhão”, recorda-se, sem saber o número exato de pranchas vendidas no período: “Sei que foram milhares”, revela, ressaltando que, ao contrário dos modelos “de lazer” encontrados hoje em dia em qualquer supermercado, os bodyboards de suas marcas Tubo e Machucho eram destinados à alta performance: “Tinha até uma prancha assimétrica, com borda que mudava, mais solta na frente e com mais ataque atrás”, relembra.

Perguntado sobre as propriedades da espuma de ethafoam consagrada nos bodyboards, Jair passa então a descrever as vantagens desta matéria-prima para diversos tipos de pranchas: “É uma espuma bem durável, mais macia em cima e com o fundo mais duro, não absorve muita agua pois tem célula fechada”, explica, citando o uso do ethafoam nas pranchas de softboard estrangeiras. “Se rasgar, ela até pode encharcar por fora mas por dentro não”, completa.

Termo-moldagem

Quando a onda do bodyboard passou na década de 90, Jair retomou suas atenções para as pranchas de surfe, já com uma boa estabilidade financeira, alcançada graças aos investimentos que fez em imóveis e terrenos na cobiçada Lagoa da Conceição – região que foi ficando cada vez mais valorizada com a crescente especulação imobiliária e o estilo de vida ligado à natureza propagado pelo surfe. Assim, Jair passou a não depender mais da venda de pranchas para viver, o que lhe permitiu mergulhar ainda mais fundo na vocação de pesquisador e inventor, devorando publicações como as revistas “Composites & Plásticos” e “PU em Revista”, onde descobriu a tal máquina com pistola de spray de PU .

E foi a partir de testes constantes na junção de espumas com resina, madeira, plástico e outros materiais, que, por volta de 2005, Jair consolidou um inovador processo de fabricação de pranchas baseado em termo-moldagem – um processo onde o bloco de prancha já sai laminado de dentro de um molde, num sistema de prensa, que praticamente não gera desperdício de matéria-prima e permite replicar com exatidão e agilidade cada modelo fabricado.

O método tinha potencial para ser a nova "galinha do ovos de ouro" na carreira de Machucho como shaper, mas ele estava mesmo decidido a não se envolver mais com o dia-a-dia da produção de uma fábrica de pranchas. Então ele procurou alguém que pudesse levar a ideia adiante e encontrou no surfista profissional Guga Arruda o parceiro ideal para desenvolver comercialmente o negócio, em troca de royalties e metade da patente da inovadora tecnologia.

Na época, Guga já vislumbrava uma nova carreira profissional como shaper e a parceria deu origem em 2007 à Power Light, marca que Guga criou com sucesso, oferecendo uma série de pranchas de EPS encapadas com lâminas de madeira, carbono e kevlar (aramida). “Admiro o Machucho há muito tempo pela sua inventividade e amor ao surfe, e ao longo dos anos tive a oportunidade de conhecer e testar as suas invenções, como as pranchas de styrofoam, pranchas de plástico, EVA e tantas outras. Mas foi o método de termo moldagem que me fez mudar minha trajetória”, relata Guga.

O processo começa na prensagem no EPS, onde o shape é produzido um pouco mais grosso do que a espessura real da prancha, cortando o outline e perfil com fio quente para encaixar no molde e posteriormente unir a capa externa com o material desejado. Ao elencar as vantagens de sua invenção, Jair é enfático em dizer que trata-se de um sistema único no mundo, que tem como principal atributo a simplicidade: “O shape bruto já sai prensado junto com a laminação, não tem que lixar e não tem que shapear”, observa, destacando a leveza e a durabilidade das pranchas.

Ele avalia que, ao contrário dos outros sistemas similares que existem no mercado, baseados em moldagem a vácuo, o sistema de prensagem que criou permite replicar com precisão mais de 500 pranchas utilizando um mesmo molde, com muito mais funcionalidade. “Nos sistemas a vácuo, você tem que ficar com a maquina ligada por horas, enquanto a resina não seca e ainda assim a laminação da prancha não sai acabada ”, observa. “Já no nosso sistema, é só retirar o plástico desmoldante que a prancha sai lisinha e laminada, praticamente pronta para o uso”, completa.

Com uma metodologia de fabricação precisa, durável e economicamente viável nas mãos, Guga passou então a focar o seu trabalho em ajustes no controle de flexibilidade, peso e acabamento das pranchas, a partir de testes com as misturas de materiais. Além disso, ele desenvolveu inserts de moldes dentro dos moldes, o que permitiu diversificar os modelos oferecidos, alterando o formato da rabeta, o tamanho e a espessura das pranchas, de acordo com a preferência do surfista.

O sucesso da Power Light hoje se traduz em um volume de vendas mensal de 150 pranchas no inverno, subindo para 200 no verão. Em 2014, Guga transferiu a fabricação das pranchas do quintal de sua casa para um espaçoso galpão no bairro Rio Tavares, onde emprega mais de 20 pessoas e oferece mais de 20 designs diferentes, que incluem pranchinhas, funboards, pranchas de kite-wave e stand-up-paddle, muitas delas desenvolvidas com a consultoria de Jair: “Hoje em dia tem um monte de gente tentando imitar as invenções do Machucho, mas só quem trabalhou décadas no desenvolvimento deste método pode reunir as informações necessárias para fazer as pranchas que fazemos”, analisa Guga.




Prancha Inflável

Na minha primeira visita em 2011, Machucho estava desenvolvendo um sistema derivado do processo de termo-moldagem, visando a produção de pranchas ocas, com dois bolsões internos de ar, divididos por uma longarina flexível, num revestimento formado por duas cascas externas, coladas como um sanduíche.

O conceito permite uma releitura mais eficiente da chamada “prancha inflável”, uma das invenções mais inusitadas de Machucho. “A ideia da prancha inflável não tem nada demais e não tem nada a ver com essas pranchas ‘de dobrar’ que hoje existem por aí”, ele trata logo de esclarecer.

O modelo original surgiu em 1980, a partir da premissa de criar uma prancha oca que pudesse ser preenchida a partir de um bico de ar, com uma bomba igual às usadas em pneus de bicicleta. Feita com madeira e fibra de vidro, sem longarina, Jair conta que a prancha tinha elasticidade e ia ficando robusta a medida que se enchia o seu interior com oxigênio. O resultado era um aumento significativo na flutuação da prancha, com benefícios diretos na performance do surfista na onda.


quiver 1980, Itapirubá

A invenção de Machucho, produzida sob a marca “Água” em modelos quadriquilha, chamou a atenção da mídia na época, a ponto de ser destaque em uma revista (cujo exemplar ele perdeu), mas a falta de uma material mais leve e resistente o fez abandonar a ideia de levar o negócio adiante. Isso até alguns anos atrás, quando ele passou a trabalhar com materiais como o carbono e a aramida e decidiu criar um novo protótipo.

Vasculhando num canto da oficina, Machucho saca uma prancha modelo fish 5’11 com um biquinho de pneu de bicicleta centralizada próximo ao bico, bem no meio da sua logomarca - que traz um escudo com a letra “M” no estilo e cores do famoso escudo do personagem “Super-Homem”: “Fiz alguns novos modelos com carbono por fora e miolo de styrofoam e kevlar por dentro”, explica Jair, mostrando detalhes da prancha feita em molde de termo-moldagem, formada por uma capa externa de laminação de 5 a 6 mm de espessura e uma casca interna de XPS de dois centímetros de espuma, deixando duas partes ocas para receber a calibragem desejada de acordo com as condições do mar. A premissa é que quanto mais cheia de ar, maior será a flutuação e a facilidade da prancha em imprimir velocidade em ondas pequenas e sem força.

Surfista dedicado, daqueles que largam tudo pra pegar onda quando o mar está bom, Jair conta que foi para a água algumas vezes para testar a nova criação nas ondas da Joaquina, Mole e Barra da Lagoa - as praias que mais costuma frequentar - e comprovou que, ao encher o interior de oxigênio, a prancha torna-se muito mais leve. “A prancha fica como um balão dentro d’água e faz uma diferença significativa especialmente em mares pequenos”, atesta. Neste sentido, ele revela a intenção de experimentar trocar o oxigênio do interior da prancha por gás hélio, o que poderia proporcionar ainda mais leveza nas manobras e fazer o surfista flutuar com velocidade sobre as merrecas. “Acho que isso deixaria a prancha uns 200 gramas mais leve”, analisa.


Praia Mole 2013, foto: Marcelo Santana
Fórmulas e Funções

A disseminação de criações como esta para o grande público depende em última instância de sua viabilidade comercial, além do investimento em pesquisa e desenvolvimento. Experimentar com compostos químicos e criar processos inovadores significa também ter que inventar a adaptar equipamentos para poder realizar as tarefas desejadas, e Jair já investiu muito tempo, dinheiro e esforço em maquinário para poder desenvolver as suas ideias. Assim, se o sistema de termo-moldagem é hoje um sucesso graças à funcionalidade de produção, outras inovações como a prancha inflável e o uso de espumas com qualidades superiores como o XPS, ainda esbarram em custos elevados e dificuldades de produção.

Pioneiro em trabalhar com o XPS ainda nos anos 80, Jair passa e me explicar porque os blocos de EPS, mais conhecido como isopor, acabaram se consagrando no mundo do surfe como substitutos dos blocos de poliuretano (PU) ao invés do XPS: “O custo maior de uma prancha convencional é o bloco e o EPS é mais barato”, analisa Machucho, para depois elencar as qualidades do XPS frente ao EPS. “O styrofoam é mais resistente à pressão, tem mais densidade, então ele iria melhorar a resistência do bloco que já é boa, além de não absorver água. Então se o bloco quebrar você nem precisa consertar”, afirma, usando como exemplo a prancha de XPS que fez para o filho Jonas “Tatuíra” – que é shaper e surfista profissional - em estilo firewire com borda de madeira: “Fiz a prancha com rabeta swallow e depois ele quis mudar a rabeta. Então ele fez um corte na prancha e nem se deu ao trabalho de cobrir com resina, pois o bloco não absorve água”, explica.



Esta propriedade de célula fechada que confere vedação total ao XPS tem sido explorada de forma radical por surfistas da Califórnia como Ryan Burch, que popularizaram a versão pura dos blocos de styrofoam pegando altas ondas com pranchas quase quadradas sem quilhas e sem laminação. No Brasil, Machucho conta que, mesmo com o surgimento de um fabricante nacional deste produto – utilizado para forração e revestimento térmico - ainda assim, ele enxerga obstáculos para a sua popularização como alternativa comercial na produção de pranchas de surfe. “O pessoal não está acostumado a mexer com o XPS e ele é difícil de trabalhar. Na plaina tem que cortar na marcha lenta se não o bloco solta pedaços”, avalia, acrescentando que o bloco precisaria de longarina para poder dar a curva do shape no método tradicional de fabricação, algo que Jair já está desenvolvendo.

Pegando em pedaços de amostras de bloco rígido que tem na oficina ele, mostra que o XPS tem um lado mais duro e outro mais macio, “Enquanto ele está com a casca, ele é duro, mas depois que corta com fio quente já fica mais maleável”, comenta para depois explicar que, enquanto EPS expande com vapor de água, o XPS é extrusado numa maquina de extrusão continua, como o PVC, produzindo massa ininterruptamente. “Depois o material passa por prensa pra dar densidade conforme o aperto dos rolos”, explica. E assim a conversa prossegue por diversas técnicas e nomenclaturas que eu tenho que me esforçar para anotar e compreender.



Remando em Pé

Volto a encontrar Machucho somente em dezembro de 2013, quando surgiu a oportunidade de escrever este perfil. Dois anos e meio haviam se passado e, mesmo revisando na véspera todo o conteúdo das gravações de 2011, adentrei o amplo gramado que leva à sua casa naquele abafado início de tarde de verão, cheio de dúvidas a respeito das dezenas de compostos químicos e processos que envolvem a descrição de suas criações – dados que eu precisava confirmar para evitar escrever informações equivocadas na matéria.

No canto esquerdo do gramado estavam enfileiradas algumas daquelas estranhas e divertidas cabanas em forma de tronco de árvore. Pintadas em cores esverdeadas elas se  à paisagem cercada de plantas e árvores. Segui a trilha que leva até a casa no meio do terreno e encontrei Machucho de bermuda e sem camisa, descansando no sofá de sua sala. É um ambiente tranquilo de um homem que mora sozinho depois de dois casamentos e três filhos já adultos: Anita, Luiza e Jonas, que hoje mora e trabalha em Itapirubá - no mesmo local onde Jair teve sua oficina na virada dos anos 70 e onde ainda costuma curtir umas ondas nos finais de semana.

Fora estes passeios para o sul do estado onde estão as suas origens, Machucho não é muito de viajar e sabe apreciar com serenidade as ondas e as belezas naturais que o cercam em Floripa. “Ontem mesmo peguei altas ondas na Barra da Lagoa. O pessoal diz que não dá mais onda lá, mas não é verdade”, polemiza, revelando que há anos usa o mesmo modelo de prancha: uma 5"6"" fish quadriquilha, feita de molde com bloco de EPS “ideal para ondas da ilha”, segundo ele.

Minhas anotações trazem uma lista com palavras e siglas de compostos químicos, incluindo: polímeros, poliestireno, polipropileno, PU, EPS, XPS, polietileno, plásticos EVA, ABS, PVC e PET reciclado, resinas de PU, poliéster e epoxi, além de uma série de processos que eu pretendia organizar em uma sequencia cronológica. Mas diante do jeito desprendido de Jair em relação a números e datas, vi que isto seria uma tarefa complicada e resolvi iniciar a conversa perguntando sobre o que ele andou fazendo nos últimos tempos. A resposta veio na forma de uma nova e hoje popular sigla: SUP.

E se em 2011 Jair afirmara categoricamente que não comercializava mais pranchas com sua marca e que não pretendia voltar a fazê-lo, descubro que a explosão da prática do stand-up-paddle (SUP) nesse intervalo de dois anos fez o veterano shaper mudar de ideia e novamente mergulhar de cabeça na produção das grandes pranchas a remo. Foi assim que a partir do verão de 2012, em parceria com o amigo Paulo Endroy, Jair desenvolveu os seus primeiros SUPs, num experimental processo de prensagem sem molde. Meses depois, com a ajuda do jovem shaper e laminador Fernando de Souza, mais conhecido como “Play”, ele decidiu investir na ampliação da produção, em modelos feitos a partir de blocos de EPS com cobertura de madeira e fibra de vidro, laminados dentro do molde com a técnica de termo-moldagem.

O sucesso foi imediato e a dupla inclusive chegou a produzir SUPs para outras marcas. Pergunto então a Jair se ele acredita que a moda do SUP possa replicar na mesma proporção o fênomeno do bobyboard nos anos 80: “Com certeza já virou uma febre”, sentencia, “fizemos um estoque inicial de 250 pranchas que já acabou”, ele conta, citando a produção de modelos de SUPs de 12 pés, 10 pés e até de 7 pés para pranchas pequenas, feitos a partir de três diferentes prensas.

Trabalhando a pleno vapor para o verão de 2014 que se anunciava, ele relatou estar fazendo quatro modelos de SUP - dois para pegar onda e dois para remada, além de uma 12 pés bem grossa, que abriga duas pessoas e mais parece um barco. Em busca de mais leveza para os modelos wave (destinado a surfar ondas), ele explica a ideia de fazer um modelo com styrofoam e reforço de resina epóxi e uma uma capa de plástico com sistema de prensagem”, mas tem dúvidas se ele seria comercialmente viável. “Dá trabalho e custaria o dobro, mas é uma prancha pra vida toda”, avalia.

 

Impulsionado pelo desejo de Play em tocar o negócio dos SUPs, Machucho conta que largou as experiências com a pistola de spray de PU e voltou para a sala de shape, onde continuou experimentando processos voltados à fabricação de pranchas. Sobre a promissora técnica de prancha prensada sem molde, utilizando apenas um gabarito, produzida com borda de borracha EVA que já vem por dentro do bloco (ao invés de ser colada por fora) e encapada com de plástico e resina de PU, Jair explica que o shape é cortado em maquina CNC e permite muita liberdade na criação de outlines e facilita o uso do XPS, tão valorizado por sua leveza e impermeabilidade. “O XPS tem célula direcionada, então tem que lixar ele todo de um lado só, pois se lixar ao contrário, ele cria cabelo”, alerta, “mas hoje as maquinas de usinagem já conseguem resolver esse problema”, completa.

Jair relata que também explorou junto com Guga algumas variações da prancha prensada em sanduíche, de onde sairam modelos de fishes, kite-wave, funboard, com capas de plástico de ABS, polietileno ou PET reciclado: “O plástico é mais leve, resistente e menos quebradiço que a fibra de vidro e tem mais elasticidade, e até agora nenhuma prancha quebrou”, contou animado.

Demonstro interesse especial no uso PET reciclado como uma matéria-prima que teria um forte apelo ecológico. Jair concorda, mas não demonstra uma empolgação especial, pois, segundo ele, hoje em dia “todos esses materiais como poliuretano e EPS e até mesmo os restos de resina misturados com plásticos já estão sendo reciclados por essas empresas que usam os resíduos para a produção de asfalto e blocos de concreto para paredes”, cita ele, explicando que destina todos os seus resíduos para a reciclagem, sendo que uma fábrica de rodapés coleta as sobras de EPS de sua produção. Além disso, ele ressalta que, apesar de mexer com componentes altamente tóxicos, o seu trabalho se baseia em técnicas que geram muito menos desperdício de matéria-prima, e, por conta disso, suas técnicas de produção são mais competitivas e limpas do que a fabricação convencional.


Itapirubá, anos 80
Ossos do Ofício

Retomo então a questão das invenções que se perderam no tempo, pedindo para que ele me fale das ideias que não deram certo. A lista inclui pranchas de surfe a partir do bloco flexível e super leve que ele usava para bodyboards: “Investi um dinheiro nisso, mas a combinação com a laminação não funcionou, pois ficou quebradiça”, explica.

Outra ideia promissora foi um sistema de quilhas de encaixe sob pressão, confeccionada ainda ainda nos anos 80 a partir de um molde de ferro, onde o encaixe funcionava com um pino de nylon dentro e um pino de metal por fora, sem parafuso. “Ela encaixava sob pressão e só saía com um impacto feito pela parte de trás. Nunca perdi uma quilha assim”, revela Machucho, contando que chegou a fazer muitas de suas pranchas de uso pessoal com esse sistema, mas nunca chegou a comercializá-las.

Como a maioria dos shapers que começaram a fazer pranchas nos anos 70, Machucho se acostumou a ter que fazer suas próprias quilhas e revela também que chegou a criar desenhos de um sistema para elas baseado numa engrenagem parecida com a dos relógios de ponteiro, que permitia ao surfista mudar o ângulo das quilhas do jeito que quisesse. “Podia até virar elas ao contrário”, observa.

Mas nem só de surfe respira a mente inventiva de Jair, e ele contou também que está em processo de patentear um cabide inflável de plástico que tem a propriedade de secar e passar as roupas penduradas nele. “Funciona sem energia, com uma bombinha de ar para inflar. A roupa já sai esticadinha de dentro”, explica.

Realidade Plástica

Voltei a contactar Machucho em agosto de 2014 para fazermos umas fotografias atuais para ilustrar esta matéria. Aos 62 anos, ele veste calça jeans, camiseta e tênis all-star, fazendo jus ao seu físico e espírito jovens, onde apenas as marcas do sol deixadas na pele clara ao longo de tantos anos no mar, denunciam a passagem do tempo. Na entrada do galpão que antes abrigava as cabanas de PU em forma de tronco, vejo agora um ambiente muito mais parecido com o de uma oficina de surfe, abrigando uma linha de produção de SUPs em moldes e novos maquinários.

Logo pergunto sobre a evolução das ideias ventiladas meses atrás e fico sabendo que a pistola de spray de PU foi deixada de lado, que o cabide inflável ainda aguarda interessados e que o SUP wave de styrofoam chegou a ser produzido com ótimo resultado, mas que demanda muito custo de produção para vingar comercialmente, assim como as pranchas infláveis.

Mas nem tudo ficou pelo caminho e sou informado de que a ideia das pranchas feitas no sistema de prensagem sem molde e com borda de borracha foi abraçada pelo shaper Avelino Bastos, e que, após diversos testes e adaptações ganhou escala comercial com molde de eps e capa de polietileno. “Nossa parceria surgiu por sinergia de projetos. Eu estava desenvolvendo uma tecnologia alternativa para fabricação de pranchas e quando vi esse projeto do Machucho percebi que eram bem complementares”, conta Avelino, talvez hoje o shaper com maior escala de produção de pranchas de surfe em Florianópolis, onde comanda desde os anos anos 70 a marca Tropical Brasil.

Com boa capacidade customização das criações, Avelino acredita que a união das duas tecnologias resultou em um processo que “possibilita pranchas menos frágeis e com outros recursos de design e desempenho que as pranchas convencionais não atingem”, explicando que pretendia iniciar com a produção de SUPs, passando depois para a pranchinha também.

Admirador de longa data do trabalho de Machucho, Avelino atesta que “existe muito pouca gente como ele no surfe não só no Brasil, mas no mundo todo”, referindo-se ao papel instigador de Jair, com sua inventividade que impulsiona a exploração de novas ideias e aponta novos caminhos em um cenário produtivo onde a velha prancha de PU e fibra de vidro dos anos 60 ainda é dominante. “Em uma indústria com tão poucas evoluções nessa área ele tem feito o papel do ‘pensador’, aquele indivíduo irrequieto que questiona e procura alternativas construtivas. Isso provoca e gera evolução”, afirma Avelino, acrescentando que Jair “agrega grandes habilidades criativas, pensa simples e fora dos padrões, pesquisa muito, mistura ideias, busca alternativas inusitadas, aprende, testa e não tem medo de errar”.

 
Sendo assim, é natural pensar que haveria alguma outra grande novidade escondida nesta nova visita ao laboratório, e assim que eu e o fotógrafo Rafael Ribeiro fomos recebidos por Machucho e seu sócio Play, que comanda o dia-a-dia da produção, fomos levados a acompanhar de perto a fabricação dos novos modelos de SUP para o verão de 2015, agora produzidos com ethafoam (polietileno) - o mesmo material de sua consagrada linha de bodyboards dos anos 80: “Hoje já conseguimos pegar a pele de polietileno e fazer o processo todo dentro do molde, então a prancha já vem encapada com solda de ar quente”, explica Machucho, animado com os resultados alcançados e a expectativa de produzir cerca de dez modelos por dia para tender à demanda do próximo verão.

 

A esta altura, a dupla realizava os últimos ajustes no maquinário adaptado por Machucho para a produção, que inclui uma maquina de solda com soprador térmico. Além disso, haviam programado alguns testes com um novo fornecedor, em busca de um polietileno com a menor absorção de água possível, a partir de células fechadas ainda menores. O novo método permite um sistema de produção em série de um novo tipo de SUP que custa ao cliente 30% a menos do que o valor dos modelos atuais de EPS que são a regra no mercado atual.

 



Machucho e Play
 

A aposta nas novas pranchas de polietileno não significa que a dupla abandonou a bem-sucedida produção dos SUPs em molde, prensados a partir de um sanduíche de EPS, lâmina de madeira (figueira) e resina, com variações que incluem a inserção de uma camada final plástico soft (polietileno expandido) ou de plástico ABS mais rígido, que visam substituir a última camada de resina, facilitando o processo de secagem e conferindo mais leveza e um acabamento instantâneo para a prancha.

 

Diante da facilidade conferida por este tipo de processo, que inclui a redução dos custos e mais agilidade na produção, Machucho acredita que a evolução do processo de fabricação de pranchas irá caminhar inevitavelmente na direção de sistemas de moldagem com uso de polímeros - em técnicas como a das pranchas esculpidas em maquinas de CNC, “que vão derretendo o plástico e jogando o polímero em forma de fiozinho, formando a figura desejada”, explica, ao vislumbrar o futuro que tanto persegue.

 

Em 2015, este último processo de fabricação já estava devidamente consolidado para a produção em escala comercial e Machucho me conta que o galpão teve que ser ampliado para abrigar os dois métodos de fabricação de pranchas, que passaram a funcionar simultaneamente, com os SUPs e pranchinha feitos em molde de EPS, lâmina de madeira e resina, e os novos SUPs e minimodels tipo softboards, toda de polietileno (styrofoam), sem cola nem resina, num bloco inteiro soldado apenas com calor.

 
 



Processo Motivacional
 

A meu pedido, subimos ao empoeirado e abafado depósito de Machucho para resgatar alguns modelos que permitissem traçar uma linha cronológica ilustrada da diversificada evolução de sua carreira como fabricante de pranchas. A bagunça do espaço é simbólica da personalidade de Jair, onde a motivação reside no prazer do processo criativo, voltado ao desafio que se anuncia, ao invés de um eventual apego nostálgico ao equipamentos que resultaram destas conquistas.

 

Assim, as pranchas estão lá entulhadas sem muito critério e depois de revirar dezenas delas, Machucho não consegue encontrar alguns modelos relevantes que se perderam no tempo e no espaço. Mas lá está uma monoquilha 7 pés dos anos 70 shapeada a mão e com o discreto rabisco original: “Shaped and Laminated by Machucho”. Encontramos também um velho bodyboard de PU com alça e um outro modelo popular de ethafoam. Perto dela, uma empoeirada quadriquilha H20 hotdog me lança de volta para meados dos anos 80, junto a uma prancha colorida com um inusitado design de duas rabetas pin. “Ela foi feita da união dos blocos de duas gunzeiras com rabeta pin colocadas em diagonal”, explica Jair.

 



Vasculhando o espaço foi fácil identificar uma prancha inflável, na versão moderna de prensagem com carbono e aramida e seu inusitado bico de pneu de bicicleta. A elas vão se somando diversas pranchas encapadas com combinações variadas que Jair vai identificando: uma prancha toda preta feita de fibra de carbono – “esta aqui é muito leve mesmo, pesa somente 1,7 quilos”; outras com sanduíches de plásticos ABS, EVA, resinas de fibras de vidro e epoxi; espuma de styrofoam sem laminação e bordas de borracha, e algumas experiências com lâminas de madeira: “a madeira é o material que oferece melhor resistência para as pranchas de molde”, analisa.




 

Além de Play, o seu pai Fernando - amigo de longa data de Machucho e que também trabalha na fabricação dos SUPs - nos ajuda a pinçar e a tirar a poeira das pranchas com um pano. “Dificilmente vai ter um material leve que ele ainda não tenha testado”, ele comenta. Ao final da seleção, temos uma dúzia de pranchas que passam a ser enfileiradas junto com uma outra dúzia de pranchas, reunindo diversos modelos de stand-ups de EPS, com laminações variadas, além dos mais recentes de ethafoam, e até uma mini-simmons novinha feita de EPS e capa de plástico, shapeada a mão.

 

A coleção de pranchas percorre exatos 40 anos de shape, e enquanto Jair se posiciona na frente dos modelos, que tiveram que ser aglomeradas para poder caber na foto, fico pensando na quantidade de novas invenções que seriam incluídas caso voltássemos a produzir uma fotografia com a mesma proposta daqui a dez anos.

 

Questiono também o que se passa na cabeça do criador ao olhar para todas essa pranchas diferentes e se lembrar do tempo e dedicação envolvidos em tantas experiências: “Minha diferença pros outros é que eu não costumo deixar as ideias no pensamento”, afirma, “Eu gasto uma grana do próprio bolso para poder testar. As vezes não dá certo, mas tenho que tentar pra saber, né?!”, reflete Jair, abrindo aquele sorriso característico de quem se diverte com o que faz.

 

 

* Matéria publicada originalmente na edição 361 da revista Fluir em dezembro de 2015
Fotografias atuais: Rafael Ribeiro / Fotos antigas: acervo Jair Fernandes e Anita Fernandes  

Fonte: Surf & Cult: Machucho: Sujeito Composto
Surf & Cult: Machucho: Sujeito Composto

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